A PERFEIÇÃO VEM COM A PRÁTICA

A PERFEIÇÃO VEM COM A PRÁTICA
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segunda-feira, 26 de abril de 2010

ESTARIA TUDO TOTALMENTE DETERMINADO OU TEMOS LIBERDADE DE ESCOLHA

História, imagem e narrativas
No 10, abril/2010 – EDIÇÃO ESPECIAL - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Determinismo, Liberdade e Astrologia nos Estóicos
Marcus Reis Pinheiro
Prof. Adjunto do dept. de Filosofia da UFF
Pos-Doutor em Filosofia, UFRJ
Doutor em Filosofia, PUC-Rio
Resumo:
O presente artigo descreve a filosofia estóica especialmente no que concerne ao problema da liberdade e do
destino. Sendo uma doutrina determinista tanto em relação ao cosmos quanto em relação à ética, o estoicismo
defende certo tipo de previsão divinatória, como a astrologia. Assim, este trabalho termina apresentando alguns
argumentos estóicos que defendem a prática divinatória.
Palavras-chave: estoicismo, divinação, astrologia, liberdade, destino, determinismo
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Estaria tudo totalmente determinado? Há alguma liberdade de escolha, para nós
humanos? O que é o destino? O que é liberdade? Estas questões norteiam o presente trabalho.
Quando ouvimos falar das Moiras1, de fatos como a escolha de Aquiles2 e as complicadas
teias dos acontecimentos que levaram Édipo3 a viver tudo que viveu, percebemos o quanto
tais questões eram centrais no pensamente grego. No entanto, podemos dizer que a questão
filosófica do destino (heimarmene) somente é colocada de modo explícito e rigoroso na época
do helenismo4, e são os estóicos os principais responsáveis por isso5.
A investigação da noção do destino no âmbito da filosofia estóica6 ainda se faz
importante na medida em que tal noção é um dos traços fundamentais do estoicismo:
podemos dizer que não se pode pensar a física nem a ética estóica sem essa noção com todas
suas decorrências, e a lógica estóica está fundamentalmente de acordo com tal noção7. A
liberdade humana – sua possibilidade e o modo como ela seria compreendida pelo sistema
estóico – é um tema naturalmente intrigante frente a sua posição em relação ao destino: tratase
de um total determinismo de todos os fatos, em que parece não haver espaço para
liberdade. No entanto, o estóico defende que dentro do seu sistema há sim espaço para a
liberdade, e apenas o sábio é realmente livre: a própria virtude é baseada na liberdade. Nesse
sentido, o presente trabalho procura mostrar alguns argumentos que constituem a discussão
1 Deusas que tecem o fio do destino de cada mortal. Ver Hesíodo, Teogonia, 217 [a Noite] pariu asMoirase as
Sortes que punem sem dó: Fiandeira (Klo_tó_), Distributriz (Láquesis), Inflexível (Átropon).
2 É famoso o fato que a Aquiles foi oferecida a escolha de duas formas de vida: ou ter uma morte trágica, ainda
jovem, porém ser cantado pelos aedos por toda eternidade, ou, então, viver de modo calmo e tranqüilo até a
velhice, como um fazendeiro, ser enterrado e ser esquecido. Aquiles, como sabemos, escolhe pela primeira.
Ilíada Canto IX v. 410ss. Tradução Carlos Alberto Nunes
“Tétis, a deusa dos pés argentinos, de quem fui nascido
Já me falou sobre o dúlice Fado que à Morte há de dar-me;
Se continuar a lutar ao redor da cidade de Tróia,
Não voltarei mais à pátria, mas glória hei de ter sempiterna;
Se para casa voltar, para o grato torrão de nascença,
Da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida muito longa
Conseguirei, sem que o temor da Morte mui cedo me alcance.”
3 Ver especialmente a obra de Sófocles, Edipo Rei, mas também Odisséia XI 271ss.
4 Sobre os antecedentes do embate filosófico entre o determinismo histórico e a liberdade humana, ver Ética à
nicomaco, livro III capítulo 5. Ver também o mito de Er, no final do livro X da República.
5 Ver o recente livro BOBZIEN, Suzanne. Determinism and Freedom in Stoic Philosophy, Oxford: Clarendon
Press, 1998. Ver também AMAND. Fatalisme et liberte dans l´antiquité grecque. Louvain, 1945, p.6.
6 Os dois textos fundamentais de citações dos estóicos são LONG & SEDLEY. The Hellenistic Philosophers
Cambridge University Press: Cambridge, 1987, o qual abreviaremos como L&S e o Von ARNIM. Stoicorum
Veterum Fragmenta Stuttgart 1903, o qual abreviamos como SVF.
7 Ver BRUM. Estoicismo. Edições 70: Lisboa, 1986, p. 44 - 45 “(...) a lógica estóica implica, ao mesmo tempo,
uma visão do mundo que a sustém (...) implica uma teoria da simpatia universal segundo a qual todos os
indivíduos estão numa interação mútua; implica uma teoria do destino, justificando as ligações temporais de
causalidade.”.
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sobre liberdade e destino na filosofia estóica. Por fim, indicaremos o modo como os estóicos,
apoiados em sua doutrina do destino, aceitam ou refutam práticas divinatórias e de previsão,
como a astrologia.
A filosofia do pórtico8 era dividida pelos seus próprios fundadores em física, ética e
lógica9, no entanto, não podemos compreender essas áreas como as entendemos hoje em dia.
Para exemplificar a discrepância entre o que nós e os antigos entendemos por estes termos,
podemos citar que dentro do âmbito da física se estudava também teologia – já que os deuses
são parte da physis – e dentro do âmbito da lógica temos investigações que hoje chamaríamos
de teoria do conhecimento10. Tal divisão da filosofia tem, ainda, a característica de ser
orgânica, uma totalidade em que suas partes não podem existir separadamente: são partes que
só podem ser assimiladas com propriedade na sua relação com as outras. Nesse sentido, a
divisão é apenas metodológica, e o objeto a ser estudado é o mesmo nas três áreas. É
interessante citar aqui a comparação que encontramos em Diógenes Laércio11: caso
comparemos o todo da filosofia com um homem, diríamos que os seus ossos seriam a lógica,
sua carne, a ética e sua alma, a física; caso comparemos com um campo fértil, teríamos que a
lógica seria a cerca, a ética os frutos, e a física o solo e as árvores; caso comparemos com um
ovo, a lógica seria a casca, a ética, a clara e a física, a gema.
A partir dessas comparações, poderíamos afirmar que a física ocupa uma área central
no esquema de divisão. No entanto, vale lembrar o quanto é comum dizer que a ética é o tema
central do helenismo como um todo: é quase unânime a opinião encontrada em histórias da
filosofia12 afirmando que as especulações mais abstratas – como a metafísica ou a lógica
matemática – não são muito estudadas, especialmente nas filosofias helenísticas do império
romano13. No entanto, a importância da ética não pode ser ressaltada assim de modo tão
8 Vale lembrar que a palavra grega stoa, da qual deriva o termo estóico, quer dizer apenas “pórtico”, local onde
começaram a ensinar sua doutrina os primeiros estóicos: Zenão, Cleantes e Crisipo.
9 Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII, 39-40 em que a filosofia estóica é
assim dividida. Sobre o desinteresse progressivo do estoicismo pela lógica (entendida no sentido lato em que era
empregada), ver REALE, G. História da Filosofia Antiga. vol. III, São Paulo: Loyola, 1994. p. 294-296.
10 É famosa a teoria dos estóicos que defende a alma ser como uma cera em que as imagens são impressas, ver
L&S 39, também Diógenes Laércio VII, 45-46. O otimismo gnosiológico dos estóicos vai ser enfaticamente
atacado pelos céticos. Um dos conceitos centrais de sua teoria do conhecimento trata da phantasia kataleptike,
termo de difícil tradução que pode ser expresso por uma apreensão compreensiva.
11 Diógenes Laércio VII, 39-40.
12 Ver REALLE. História da Filosofia. Vol III “Advertência”.
13 O período helenístico, se for descrito estritamente, compreende, por convenção, o período que se estende
desde a morte de Alexandre o Grande (323a.c.), até a vitória de Otaviano (César Augusto) sobre Marco Antonio
na batalha de Áccio no ano de 31 a.c. O período que se segue é chamado de Império Romano, e se estende até a
sua queda pela invasão dos bárbaros no fim do século V. No entanto, a influência da cultura grega é fundamental
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apressado, especialmente se levarmos em conta as complexas elaborações da lógica e da física
estóicas, retomadas, por exemplo, no chamado neo-estoicismo do final da renascença e no
inicio da modernidade14.
Física e Ética
Um dos pontos que nos interessa, e que também mostra a interconexão dessas áreas, é
uma definição de virtude que muito comumente encontramos nos filósofos estóicos: virtude é
viver de acordo com a natureza15. O objetivo ao qual a natureza nos guia seria o de viver de
acordo com ela. Trata-se de afirmar que nós mesmos somos uma parte da natureza e que
nosso lugar adequado é aquele que ela nos designou. Nesse sentido, o homem que investiga a
ética será o mesmo que investiga a física: viver de acordo com a natureza significa ao mesmo
tempo seguir o imperativo délfico de se conhecer a si mesmo e também investigar a physis em
sua totalidade.
Um dos elementos centrais da física estóica baseia-se em uma afirmação que já
encontramos implicitamente em Aristóteles: a lei da causalidade universal16. Nos estóicos,
encontramos a formulação de que tudo ocorre de acordo com uma causa: não haveria uma
pura espontaneidade na natureza, como se algo pudesse surgir sem algum impulso anterior,
como se houvesse a possibilidade de um efeito sem uma causa17, como pretendiam os
epicuristas com seu klinamen. Caso analisemos essa lei, concluiremos que aquilo que decorre
de uma causa, decorre necessariamente, isto é: caso sejam dadas as condições causais para
que um fato ocorra, ele necessariamente ocorrerá18. Dito de outro modo, sendo dado
determinado conjunto de fatos, o fato que se segue ocorre necessariamente, sendo impossível
ocorrer um fato que não estava predeterminado pelas condições antecedentes. Podemos já
em todo esse período, e outros autores denominam de Helenismo todo o período desde o século IV a.c. até o
século V d.c.
14 O precursor desta corrente de pensamento é Justus Lipsius no séc. XVI, mas vemos também essa tendência em
Montaigne e especialmente no determinismo de Espinoza. Cf. http://www.iep.utm.edu/n/neostoic.htm#SH4d.
Sobre o interesse contemporâneo na lógica estóica, ver, por exemplo, o livro BARNES, Jonathan. Logic and the
Imperial Stoa. Brill: Leiden, 1997. Ver também MOREAU, Jacques. Le stoicisme au XVI et au XVII siècle. A.
Michel: Paris, 1999.
15 Diógenes Laércio, VII 87, phýseo_s télos eîpe tò homologouménos tê_i phýsei zé_n, hóper estì kat´aretè_n
zé_n, “o fim da physis, dizia, é viver de acordo com a natureza, que é o mesmo que viver de acordo com a
virtude”.
16Em Platão e Aristóteles, aitía, causa, está estreitamente relacionada com a explicação de algo. É famosa em
Aristóteles a afirmação de que só se conhece algo quando sabemos suas causas e seus princípios. Ver, por
exemplo, Metafísica livro I.
17 Ver LONG. Hellenistic Philosophy. Duckworth: Bristol, 1974. p. 163-170. A citação explícita está em L&S
55N, citação de Alexandre de Afrodisia, De Fatum191, 30- 192, 28.
18 A complexidade das noções de causa nos Estóicos é notória, havendo várias relações interessantes com a
lógica e a noção de possibilidade. Ver L&S 39 em que a noção de modalidade é tratada.
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prever que nasce aqui uma interessante discussão acerca do estatuto ontológico de um fato
possível, discussão essa em que não entraremos neste artigo19.
A partir da lei da causalidade universal decorre naturalmente o determinismo físico
proposto pela noção de destino dos estóicos. Na medida em que aquilo que sucede a cada
evento já está determinado pela própria característica do evento, os fatos sucessivos são
totalmente determinados pelos fatos que os antecedem, formando um elo causal inviolável no
desenvolver da história universal – desde as origens dos tempos até o final, caso haja um.
Assim, chegamos à tão famosa definição do destino no estoicismo, cujo exemplo de
formulação podemos encontrar em Gellius20 : “No Sobre a Providência, livro 4, Crisipo
afirma que o destino (heimarmene) é uma certa ordem infinita da totalidade: um grupo de
coisas segue e sucede às outras, e a interconexão (epipokles) é inviolável.” Há uma
interconexão intrínseca às coisas mesmas, formando um elo causal necessário que leva cada
acontecimento a suceder ao outro necessariamente. Assim, a partir do primeiro momento do
universo, sendo ele mesmo um conjunto de condições causais que leva necessariamente ao
acontecimento do segundo momento e assim por diante, todo o resto dos acontecimentos deve
ocorrer do exato modo como ocorre. Todo o universo já está determinado em qualquer um
dos seus momentos, já que não há possibilidade de acontecer algo distinto que não seja
determinado pelos próprios fatos que já estão em andamento.
Alguns aspectos deste determinismo ainda precisam ser esclarecidos. Os estóicos vão
afirmar que tal interconexão dos fatos não se dá sem um propósito, os acontecimentos
universais estão antes estritamente subordinados a um bem intrínseco às próprias coisas: tratase
do melhor dos mundos possível. Tudo ocorre de acordo com uma causa e tudo ocorre na
melhor forma possível. E não apenas para as próprias coisas elas mesmas, mas também uma
em relação à outra: o próprio mundo, por exemplo, ajuda o homem a ser melhor do que ele é.
Há uma teleologia ética no estoicismo: as moscas, por exemplo, existem para que nós não
sejamos preguiçosos e fiquemos dormindo o dia inteiro; os ratos, para que aprendamos a
deixar os pertences organizados21, e assim cada um dos fatos auxilia o homem naquela tarefa
que a própria natureza lhe entregou: a de se tornar um homem virtuoso, isto é, viver de acordo
com ela.
Os historiadores da filosofia estão de acordo ao afirmar que o primeiro filósofo a tratar
mais explicitamente da noção de destino e de um determinismo imanente à natureza foi
19 Ver DUHOT, J.J. La Conception Stoïcienne de la causalité. Vrin: Paris, 1989.
20 L&S 55k.
21 L&S 54o.
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Heráclito22. Em Diógenes Laércio, ao comentar a vida de Heráclito e suas doutrinas,
encontramos: “Em geral, suas opiniões são as seguintes: todas as coisas são feitas do fogo e
dissolvidas nele. Tudo acontece de acordo com o destino (heimarmene) e as coisas são
harmoniosamente arranjadas de acordo com as transformações dos opostos.”23 De Heráclito é
também a afirmação de que todo o universo passaria por modificações periódicas em seus
elementos: “O fogo vive a morte da terra e o ar vive a morte do fogo; a água vive a morte do
ar e a terra a da água”24. É controverso o fato de Heráclito ter ou não afirmado um eterno
retorno cósmico, mas os estóicos claramente se dizem repetindo o efésio neste aspecto25.
Nesta altura de nosso texto, apresentamos, então, a noção de eterno retorno cósmico
relacionado com o determinismo de que vínhamos tratando. O cosmos passa por períodos
cíclicos de destruição e de reconstrução em que todos os fatos voltam a ocorrer exatamente da
mesma forma26. O momento de total destruição é chamado de conflagração, ekpyrosis, em
que a única realidade presente é o fogo artífice, pyr teknikon27, o próprio Deus para os
estóicos que não cria o mundo do nada, mas o estrutura e organiza. Vamos descrever de modo
geral este fogo artífice.
É fácil ver como os próprios estóicos se dizem seguidores de Heráclito em alguns
aspectos, ainda mais quando lembramos da importância do logos e do fogo naquela escola e
no filósofo. Para os estóicos, assim como para Heráclito – na medida em que se pode falar
algo de Heráclito com alguma precisão –, há uma realidade única identificada ora como logos,
ora como fogo, e que tal realidade é responsável pela organização intrínseca do real. O deus,
fogo vivo, é uma matéria imanente, o fogo, idêntica ao logos, que tudo organiza e a tudo
preside28. A partir deste fogo, toda a realidade renasce ciclicamente, e no desenrolar de seus
acontecimentos, o cosmos respeita uma ordem interna, um logos imanente que faz com que
tudo seja do jeito que é, organizado e determinado por um destino presente desde o começo
22 Ver KAHN, The art and thought of Heraclitus. Cambrig: Cambridge University Press, 1979, p. 147-159.
23 Diógenes Laércio. IX, 7-11. KHAN ainda cita um outro trecho encontrado em Diels e Kranz, Die Fragmenten
der Vorsokratiker, A 1.8 “O cosmos é gerado do fogo e é aceso novamente de acordo com certos períodos
alternados, durante toda eternidade”.
24 BORNHEIM, G. (org.) Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997, fr. 76. Ver também fr. 36.
25 Ver BELS, Jacques. “Lê Thème de la grande année d´Héraclite aux Stoïciens” in Revue de Philosophie
Ancienne, Bruxelles: OUSIA, 1989.
26 L&S 46g (Aristocles (Eusebius, Evangelical preparation 15. 14.2; SVFI, 98)) “Em certos momentos
destinados, o mundo inteiro entra em conflagração e então é constituído novamente. Mas o fogo primordial se
caracteriza como se contivesse uma semente que possui razões (logoi) de todas as coisas e das causas dos
eventos passados, presentes e futuros. A interconexão e a sucessão destes são o destino, a sabedoria, a verdade e
a lei inevitável e inescapável dos seres. Desta forma, tudo é organizado de modo excelente no mundo assim
como em uma sociedade perfeitamente governada”. Tradução minha.
27 Ver todo o 46 de L&S.
28 Ver L&S 46.
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dos tempos. Esse fogo artífice é também identificado como Zeus, no linguajar explicitamente
metafórico em que os Estóicos procuravam resguardar a mitologia e religião tradicional.
Vejamos novamente Diógenes Laércio: “Uma única realidade é deus, nous, destino e Zeus: de
muitos outros nomes também é chamado. No princípio, existindo por si mesmo,
transformou toda a substância (ousia) em água por meio do ar: assim como o sêmen (sperma)
é envolto pela semente (goné), desta mesma forma – pois é a razão seminal do
cosmos – fica escondido no úmido, tornando a matéria adaptável à formação das
subseqüentes”29.
Em realidade, vemos que dentro do universo há uma intenção imanente que
acompanha tudo o que acontece. Trata-se da imagem do sêmen e do fluido seminal: há um
logos que a tudo preside e que se encontra dentro do mundo assim como um sêmen se
encontra dentro do fluido seminal. Torna-se famosa a expressão razão seminal, logos
spermatikos, cujo uso Plotino, por exemplo, faz frequentemente. Logos spermatikos é ao
mesmo tempo a vida de deus e também o padrão racional desenvolvido em todas as coisas.
Tal logos-pyr, fogo racional, como uma inteligência (nous), transforma a matéria em algo
adaptável a si, e assim configura as combinações de fatos de cada instante sucessivo. Trata-se
de salientar que este pyr não é o fogo que conhecemos, que consome combustível em si
mesmo, que é atekhnos, sem arte, sem propósito. Trata-se do fogo tekhnikos, artífice, que
causa crescimento e preservação, trata-se de um sinônimo para a psykhe e a physis de cada
realidade. Vale indicar que os astros, por exemplo, são compostos desta única substância,
deste fogo pensante, e por isso eles são divinos e considerados como realidades especiais
dentro do sistema como um todo30.
Não se trata do deus-demiurgo platônico, que de fora do mundo, doa-lhe forma: o deus
estóico é o próprio elo de ligação causal entre os fatos dominados pelo destino. Neste sentido,
o estoicismo unifica tanto uma concepção materialista e determinista do destino com uma
providência divina que organiza tudo em função do melhor. Tanto providência quanto
determinismo têm espaço na física estóica.
29 Diógenes Laércio, VII, 142.
30 “Zenão diz que o sol, a lua e cada um dos outros astros são inteligentes, sensatos e têm o fogo do fogo artífice
(pyros tekhnikon). Pois há dois gêneros do fogo, um sem arte (atekhnon) e que transforma o combustível em si
mesmo, outro artífice (tekhnikos) que faz crescer e preserva, assim como acontece nas plantas e animais, em que,
respectivamente, a physis e a alma estão. A essência dos astros é deste tipo de fogo.” L&S 46d (Stobeus i.213,
15-21, SVF I, 120)
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A Liberdade Humana31
Esta descrição da física estóica gera um impasse quando nos voltamos para as
questões éticas: como poderemos encontrar espaço para a liberdade humana –
responsabilidade frente aos seus atos, especialmente no que concerne à possibilidade de
louvar ou culpar alguém por algum ato – se a física parece não deixar espaço para nenhum
tipo de desvio frente ao que já está determinado desde o começo dos tempos? Os estóicos da
antiguidade já se confrontavam com este problema, e foi Crisipo quem apresentou as
respostas mais originais. Trata-se de um estudo profundo da noção de causa, em que Crisipo
parece salientar seus aspectos delicados que não são normalmente percebidos.
Crisipo apresenta uma divisão entre as causas completas (autoteles) e principais e as
causas auxiliares (sunergon)32 e próximas. Crisipo coloca aquilo que normalmente se chama
de destino (hiemarmene) como sendo apenas a causa auxiliar, isto é, o impulso exterior que é
necessário para o acontecimento de um fato, mas tal causa não é classificada como suficiente.
O exemplo que ilustra a explicação é aquele de um cilindro e de um cone sendo empurrados.
O fato de o cilindro deslizar de modo reto deriva, certamente, do empurrão que lhe foi
aplicado, mas tal movimento deriva também da própria natureza interna do cilindro. Caso um
cone recebesse um mesmo empurrão, o movimento resultante seria diferente, pois tal
movimento é um produto tanto do empurrão – causa auxiliar – quanto da própria natureza do
objeto empurrado – causa completa. Nesse sentido, os fatos que ocorrem no mundo não são
simplesmente analisáveis em causas simples, mas, em sua grande maioria, provêm de causas
complexas, com múltiplas causas atuando concomitantemente.
Argumento parecido usa Cícero33 ao explicar a resposta dos estóicos ao Argumento
Preguiçoso (argos logos). Tal argumento defenderia que caso aceitássemos que tudo está
completamente determinado, não faríamos nada em nossa vida, nem iríamos ao médico, por
exemplo, quando gravemente doentes. Caso a doença esteja determinada a ser curada ela será,
caso não esteja, ela não será e, portanto, não haveria necessidade alguma de nos mobilizarmos
para coisa alguma. No entanto, os estóicos afirmarão que esta não é a noção apropriada de
destino. Alguns fatos são simples, outros complexos, e isso indica que não se pode entender a
31 Um dos últimos livros especificamente sobre o tema é o já citado BOBZIEN, S. Determinism and freedom in
stoic philosophy. New york: Oxford University Press, 1998.
32 Os termos gregos foram retirados de L&S 55 I. Ver especialmente Cícero, De fato 18, 41- 44 (SVF II, 974). Os
termos latinos em Cícero são perfectae et principales e adiuuantes et proximae. Há uma passagem semelhante
em Aulus-Gelle, Noites Áticas, VII, 2 (SVF II, 1000). Temos o Fedon 99a-b que já apresenta a tese de causas
auxiliares e causas fundamentais.
33 L&S 55s, Cicero, De fatum, 28-30.
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idéia de destino correlata da mesma forma quando aplicada a um ou outro tipo de fato. Que
Laio terá um filho chamado Édipo é um fato complexo, e ele não pode ser tomado
“independente de Laio se deitar com uma mulher”. O fato de Laio deitar com uma mulher é
co-determinado (grego: suneimarmenos, latim: confatales) com o fato de Laio se tornar o pai
de Édipo. Os estóicos teriam usado tal termo para explicar certos acontecimentos: o que está
determinado pelo destino é tanto que Laio será o pai de Édipo quanto o fato de Laio deitar-se
com uma mulher. Da mesma forma, não se pode dizer que esta doença, sendo parte do destino
total do universo, irá melhorar independente de eu procurar ou não um médico, pois o que
está determinado é tanto o ir ao médico quanto o curar da doença. Pode-se ver o quão sutil é
para os estóicos a noção de causa e não são poucos os estudos a esse respeito34.
Voltemos agora à noção de liberdade nos estóicos. Importa-nos salientar que os
estóicos procuram defender tanto o determinismo total da realidade como a possibilidade de o
homem tornar-se melhor mediante um esforço de transformação de si mesmo. As noções de
desejo e expectativa vão ser fundamentais nessa defesa. Como nos indicam as primeiras frases
do livro de Epiteto35, há uma diferença entre as expectativas que temos frente às coisas –
sempre internas – e as próprias coisas – sempre externas. Com o trabalho filosófico o homem
passaria a compreender adequadamente a physis e perceberia a impossibilidade de fatos
externos não determinados pela causalidade dos fatos precedentes. Assim, o homem passa a
não mais ter expectativas frustrantes frente ao mundo exterior, eliminando a prisão em que os
desejos ilusórios – como por fama e bens materiais – nos colocam36. A rigor, tais desejos
seriam frustrantes, pois esperam por acontecimentos estritamente ligados às causas auxiliares
– externas – e não internas, e por isso estariam fora da alçada do sujeito.
No entanto, o homem tem a possibilidade de modificar suas expectativas frente ao
mundo ao seu redor, e a luta pela liberdade está na promoção desta modificação, pois a real
prisão nunca é externa, mas provém das nossas falsas espectativas. Trata-se de uma nova
forma de encarar a noção de liberdade: retiramos a noção de escolha e introduzimos a de
34 Ver AMAND. Fatalisme et liberte dans l´antiquité grecque. Louvain, 1945. ROBIN. La morale antique.
1938.. DUHOT, J.J. La Conception Stoïcienne de la causalité. Paris: Vrin, 1989. Duhot cita textos antigos
interessantes: J. Scheck, De causa continente e também o De causa continente medicorum, ambos do século
XVI.
35 EPITETO. Manual. “Certas coisas estão sob nosso poder, assim como outras não estão sob nosso poder. Em
nosso poder estão a opinião, o impulso, o desejo, a aversão e, em uma palavra, tudo que nós próprios
produzimos. Coisas que não estão em nosso poder incluem nosso corpo, nossas posses, nossa reputação, nosso
status, e, em uma palavra tudo que nós próprios não produzimos.”
36 É desta forma que Cícero, no texto já citado, De Fatum, 39-44, fala sobre uma diferença nos estóicos entre
destino e necessidade. Lá, ele mostra como a aceitação ou não de um fato externo modifica totalmente o
acontecimento deste fato externo em relação ao sujeito.
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autoconhecimento. A liberdade está no verdadeiro conhecimento de si mesmo e do mundo
que nos toca: neste sentido só o sábio é realmente livre. O sábio sabe que tipo de coisas ele
pode ou não esperar da vida, e, por isso, não se aborrece com as eventuais necessidades que
lhe acontecem. A imagem usada por Crisipo37 é aquela de uma carruagem ao qual está
amarrado um cachorro: as reações que o cão pode ter frente a esse fato são variadas, mas, de
qualquer forma, ele será arrastado pelo carro. A liberdade possível ao cachorro é andar ao
lado do carro: na medida que esta é a única possível, é esta também a única a ser desejada. O
desejo verdadeiro surge com o correto conhecimento do mundo ao nosso redor, incluindo nós
mesmos.
Assim, aquilo que acontece externamente com um homem é visto como uma das
causas – a auxiliar – para o que ele fará da sua vida, mas não se trata da única, muito menos
da mais importante. Na medida em que os desejos e expectativas que temos sobre a vida vão
preencher de sentido os fatos que nos ocorrem e também guiar nossas reações frente a esses
fatos exteriores, a causa completa de nossa vida serão tais desejos. O homem pode trabalhar
sobre seus próprios desejos e expectativas – tornando-se metaforicamente um cone ou um
cilindro, por exemplo – e, assim, aprender a reagir de forma adequada frente aos
acontecimentos exteriores. A relação do homem com os fatos que lhe ocorrem podem
transformar o sentido desses fatos. Assim como um prisioneiro está livre quando o seu único
desejo é estar dentro da prisão – e caso contrário se sentiria preso – o homem é realmente
livre a partir do momento em que aprende a aceitar completamente os fatos que ele não pode
modificar, os fatos externos. Tal aceitação é fruto de um trabalho interno, um trabalho sobre
as expectativas que temos da vida. Viver de acordo com a natureza é a única virtude do
homem livre, pois somente o desejo dele está de acordo com os fatos que necessariamente
devem acontecer. Nesse sentido, há algum espaço para o homem trabalhar dentro do destino
determinista do estoicismo38, pois ele pode e deve modificar suas atitudes internas.
37 Ver L&S 62 a (Hipólitus, Refutação de todas as heresias 1, 21, SVF 2.975.)
38 Um estudo interessante seria aquele que investigaria as relações entre destino e a teoria do conhecimento dos
estóicos: as marcas impressas na alma do homem são inevitáveis, mas o assentimento a estas marcas é fruto da
vontade humana, e neste sentido podem ser trabalhadas. Ver L&S 62 (Cícero. De Fato. 39-43).
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Divinação e Estoicismo
Por fim, vale apenas indicar a relação que o problema da liberdade no estoicismo terá
com as práticas divinatórias na época do helenismo39. A doutrina estóica do destino é
naturalmente absorvida por aqueles que defendiam as formas de divinação praticadas naquela
época40, especialmente a doutrina astrológica dos caldeus, que teve sua entrada na Grécia por
volta do século III a.C. Autores importantes do saber astrológico da antiguidade, como
Manilius, utilizam claramente argumentos estóicos41. Os próprios estóicos defendiam a
possibilidade das práticas divinatórias, e a discussão na literatura secundária não é pouco
numerosa42. Como exemplo da importância da discussão em torno da noção de destino e as
práticas divinatórias, temos o texto de Agostinho, Cidade de Deus43, em que uma boa
discussão é travada com os argumentos estóicos sobre a possibilidade da divinação44.
Grande parte dos primeiros tratados astrológicos gregos – que datam do final do
helenismo e do começo da era cristã – é marcada por um forte determinismo, e a doutrina do
destino estóica em muito contribuiu para dar um status filosófico para tal prática divinatória.
Os comentadores estão de acordo45 ao afirmar que foi com Posidônios46, estóico do século II-I
a.C. que a astrologia ganha seu maior defensor estóico. A própria astrologia vem da babilônia
39 Sobre o tema da astrologia grega, temos excelentes estudos antigos, apesar de bastante tendenciosos, quase
que iluministas, colocando o espírito científico moderno superior que a astrologia antiga: BOUCHÉ-
LECLERCQ, A. L’Astrologie grecque. Paris: Culture et Civilisation, 1899 e também o renomado trabalho de
CUMONT, Franz. Astrologie et religion chez les grecs et les romains. Bruxelles: Institut historique Belge de
Rome, 2000 [1912]. Há, no entanto, trabalhos mais contemporâneos e menos tendenciosos, como TESTER, Jim.
A History of Western Astrology. Suffolk: Boydell Press, 1996 e BARTON, T. Ancient Astrology. London:
Routledge, 1994.
40 Há um bom resumo do assunto na época do final da República romana no livro de BARTON. Power and
knowledge. Michigan: University of Michigan Press, 2002, p. 33. As práticas mais famosas que encontramos já
desde Homero são tanto a divinação por meio dos vôos dos pássaros quanto pelas entranhas de sacrifícios.
41 MANILIUS. Astronômica. Trad. G. P Goold. Cambridge: Harvard University Press, 1977 (Loeb). Ver
especialmente o livro IV. “Oh, por que consumimos anos de nossas vidas com preocupações? Atormentando-nos
com medos e desejos sem sentido? Tornando-nos velhos antes de nosso tempo, com ansiedades que nunca
terminam? Gastando nossas vidas na busca de ganhos, colocando nenhum limite aos nossos desejos; ao ponto de
a satisfação desses desejos nos deixar ainda insatisfeitos, como homens que esperam viver e nunca vivem?”.
42 Ver o texto de LONG, A. A. “Astrology: arguments pro and contra.” In Science and speculation: Studies in
Sources and philosophical Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Ali, Long critica
autores que afirmam que todo o estoicismo defenderia a divinação. Autores como Cumont, afirma Long, vêem
em todo estoicismo a influência de Posidônios, este sim, claramente a favor da divinação. Ver Barton, Power
and Knoledge, p. 37.
43 Ver todo o Livro V, especialmente os capítulos 2 e 5.
44 Além de Manilius, já citado, encontramos argumentos estóicos nos astrônomos Aratus e Cleomedes. Ver
JONES, Alexander. “The Stoic and the Astronomical Sciences”. In INWOOD, Brad. (ed.) Cambridge
Companion to the Stoics. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
45 Ver a discussão em Barton, power and knoledge, p. 37 ss.
46 O trabalho principal sobre Posidônios é de EDELSTEIN & KIDD. (ed.) Posidonius. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989, com os fragmentos completos e comentários.
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e não é sem razão que Cumont afirma que o estoicismo é uma filosofia com grande influência
semítica47. Posidônios era um pensador muito voltado para ciência em geral, e Cumont
defende que se pode ver em Posidônio claramente a influência da astrolatria dos babilônicos.
Como já dissemos, o estoicismo defende tanto um determinismo materialista –
apoiado em um jogo de forças de causas físicas – assim como uma providência imanente ao
mundo que a tudo governa e ordena. Tanto a prática astrológica quanto a divinação em geral
parece ter sido tão obviamente aceita que era utilizada como prova da existência de um
determinismo imanente à natureza. No entanto, tal argumento é por vezes criticado como
circular, pois para fundar um destino inexorável pressupõe a divinação, e quando se trata de
provar esta última, se apela para a necessidade do destino48.
No entanto, podemos encontrar pelo menos dois argumentos principais que defendem
a possibilidade da divinação: o primeiro lida com a habilidade em se decifrar o encadeamento
de causas físicas; o segundo oferece argumentos a partir da existência de deus. Em primeiro
lugar, o sábio sabe decifrar os signos do mundo que indicam os acontecimentos futuros, pois
tais acontecimentos estão determinados no momento presente. O sábio, lendo o livro do
mundo, isto é, estudando a physis e percebendo a necessária inter-relação de todos os eventos,
consegue decifrar tanto o passado quanto o futuro, pois a divinação não é nada mais que a
leitura de sinais já presentes aqui dos acontecimentos futuros que, como já vimos, estão
totalmente determinados pelos acontecimentos que os precedem. De acordo com o
testemunho de Cícero, Crisipo definiria a divinação da seguinte maneira: “ciência (episteme)
que contempla e interpreta os sinais que são dados aos seres humanos pelos deuses”49.
Em segundo lugar, o argumento principal que defende a divinação a partir da
existência de deus aparece também em Cícero50, e defende a existência da divinação a partir
da evidência da existência dos deuses. Na medida em que os deuses só podem produzir o
bem, eles necessariamente nos enviariam sinais sobre o futuro, pois é bom sabermos sobre o
futuro. A partir da refutação de argumentos que negariam o envio de sinais por parte dos
deuses, ele prova a necessidade deste envio. O argumento segue mais ou menos os seguintes
passos. Caso os deuses existam, (e eles existem) necessariamente nos enviam sinais sobre o
futuro, sendo que os únicos motivos que os levariam a não nos enviá-los seriam estes: 1) eles
não amam os homens, 2) eles ignoram o futuro, 3) eles acreditam não ser do interesse dos
47 CUMONT. Astrologie et Religion chez les grecs e les Romains. p. 65.
48 Ver especialmente, Eusébio, Praeparation Evangelica 4.3.1 e 4.3.2, apud, BOBZIEN.
49 Cícero, De divinationae, II 130, apud BOBZIEN.
50 L&S, 42d (Cícero, De divinatione 1.82-3). Veja também o 42c e 42e.
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homens saber o futuro, 4) eles acreditam ser inferior à dignidade que lhes cabe enviar sinais
aos homens, 5) eles não são capazes disso. Como nenhum dos pontos é verdadeiro, só resta o
fato de, caso os deuses existam, eles enviarão sinais do futuro aos homens. Mas é fato que os
deuses existem51, portanto, a divinação é possível. A discussão ainda leva em conta o
argumento de que o homem poderia não conseguir decifrar os signos enviados pelos deuses,
mas tal fato retiraria o sentido dos próprios deuses nos enviar sinais52.
Apresentamos, então, neste trabalho, aspectos relevantes dos argumentos estóicos que
defendem um determinismo material e também uma providência imanentista. A partir desses
argumentos, analisamos a noção de liberdade apresentada por Crisipo, baseada na concepção
de causalidade universal, para indicar que a verdadeira liberdade é encontrada no sábio que
aprendeu a virtude de remodelar suas expectativas perante o mundo exterior. Essa virtude é
viver de acordo com a natureza. Por fim, o trabalho apenas indicou a absorção de tal
argumentação determinista dos estóicos pela literatura das práticas divinatórias do helenismo.
51 O argumento que prova a existência dos deuses é o argumento cosmológico e aparece em L&S 54c: o cosmos
é organizado e as estrelas se movem matematicamente e somente através de uma inteligência se poderia dar
forma a isso tudo. Esta inteligência é deus.
52 Para um estudo mais detalhado sobre a possibilidade da divinação nos estóicos, ver BOBZIEN, p. 87 ff.
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